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Tratado sobre o humor e sobre as pernas de Ricardo Araújo Pereira

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#evr raraujo 3-1024
(fotografia de Enric vives-rubio)

(Nota: Como considerei o último livro de crónicas de Ricardo Araújo Pereira editado pela Tinta da China, Novíssimas Crónicas da Boca do Inferno, um dos melhores livros de 2013 aqui vos deixo a reportagem que fiz em Abril em Bogotá)

Show de Ricardo Araújo Pereira na Feira do Livro de Bogotá, apesar, ou por causa, do espanhol aprendido em filmes para adultos. Por Isabel Coutinho, em Bogotá

É a hora do pequeno-almoço em Bogotá. No sala do Crowne Plaza Tequendama, todos os dias há surpresas. Numa das mesas, Pilar del Río conversa com o escritor espanhol Juan José Millás — dali a umas horas, partem para Madrid. No dia seguinte, Francisco José Viegas põe a conversa em dia com o académico Onésimo Teotónio Almeida. O poeta Gastão Cruz tem a surpresa de encontrar Aurelio Major, o poeta, tradutor e editor da Granta espanhola. O realizador Miguel Gonçalves Mendes, que aqui roda o seu próximo filme com Valter Hugo Mãe, aparece de braço ao peito e pela sala também anda Inês Pedrosa. Valter Hugo Mãe, o último escritor a chegar à feira que dura há duas semanas e termina dia 1 de Maio, já teve de beber um chá de coca por causa do soroche, a sensação de enjoo e tonturas provocadas pela altitude. No domingo, Ricardo Araújo Pereira aparece de calções pretos e T-shirt vermelha, as “perninhas de canivete” entre as mesas do pequeno-almoço. É o dia em que o Gato Fedorento faz 39 anos, nasceu três dias depois do 25 de Abril. Ricardo talvez vá correr, mas, se decidir ficar no hotel, a ver o jogo do Manchester United contra o Arsenal, já está equipado como um adepto do Benfica deve estar sempre que assiste a um jogo de futebol: de vermelho.

Uma das explicações que o autor de vários livros de crónicas — Boca do Inferno (2007), Novas Crónicas da Boca do Inferno (2009), A Chama Imensa (2010), Mixórdia de Temáticas (2012) na Tinta da China — dá para ter tido tanto sucesso na Rota das Letras, o Festival Literário de Macau, onde participou há meses, é achar que os chineses o confundiram com Ronaldo. Um dos seguranças do pavilhão de Portugal na Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBO), onde os escritores portugueses são convidados de honra, todos os dias pergunta quando é que vem Cristiano Ronaldo. Não se percebe por que é que na feira Ricardo não apareceu de calções, teria feito a alegria dos colombianos. Mas mesmo composto, enfiado num fatinho Hugo Boss, não escapa a perguntas, das leitoras interessadas em literatura portuguesa, relacionadas com o facto de ser tão guapito. É a vida como ela é. Aconteceu também nas perguntas do público durante a Charla sobre crónicas y humor, em que participou na Universidade dos Andes partilhando a mesa com o académico Onésimo Teotónio Almeida que, no Correntes d’Escritas, da Póvoa de Varzim, é o recordista em provocar gargalhadas na plateia.

“Quero pedir desculpa do meu espanhol, que é muito mau”, começa a explicar Ricardo, quando abriu a sessão. “Tive algum contacto com o espanhol escrito. Com o espanhol falado, o meu único contacto foi num canal de televisão que havia em Portugal e que, a partir da meia-noite, passava filmes para adultos dobrados em espanhol. Todo o espanhol que ouvi falar foi esse. Por isso sei dizer muito bem ‘sí, cariño’ [gargalhadas na sala], ‘fuerte’ [ainda mais gargalhadas], ‘ponte de rodillas’ [põe-te de joelhos], sinto-me até alguém um pouco pervertido quando falo espanhol. Para mim, é o idioma da ‘javardice’, não sei dizê-lo em espanhol.”

Quando lhe perguntam se se considera um comediante, responde que quer ser um humorista. “Essa palavra existe em espanhol? Nunca a ouvi nos filmes espanhóis que vi” — mais risos na plateia. “Eu não diria comediante, porque esse, de certa forma, é um actor. Eu também faço isso, mas o fundamental da vida que levo é escrever os textos que depois digo. Quero que me chamem humorista, porque não sou um escritor no sentido de José Saramago, Lobo Antunes ou Gastão Cruz, que são escritores. Eu sou alguém que escreve coisas.”

Vitória sobre a morte

Embora seja capaz de dizer estas coisas para que o público lhe preste atenção, no segundo seguinte já está a falar do que viu no Museu do Holocausto, a reflectir sobre qualquer episódio bíblico, a desconstruir um mito grego ou a citar no original, em inglês, um poema de Oscar Wilde sobre o amor, outro de Philip Larkin, outro de José Gomes Ferreira ou a falar das teorias do filósofo esloveno Slavoj Zizek que diz que “o humor partilha com o mal a mesma estrutura porque, na essência do humor, há algo de sadismo”. E surpreende a plateia ao dizer que gosta de definir o humor que lhe interessa com uma frase comprida e confusa de Kafka que cita de cor: “Leopardos irrompem no templo e bebem até ao fim o conteúdo dos vasos sacrificiais. A partir de certa altura, isto torna-se um hábito e passa a fazer parte do ritual”. Uma coisa que todos os dias vemos acontecer: um animal selvagem entra num sítio sagrado, profana-o de uma forma grotesca e, passado algum tempo, isso incorpora-se no ritual. As pessoas deixam de pensar que se trata de uma profanação grotesca. “Para mim, um humorista, os poetas, as crianças e os loucos (talvez), essas quatro profissões são aquelas que continuam a dizer ‘atenção, que isto é um leopardo no templo, isto não deve ser integrado no ritual, porque é bárbaro’”.

É nessa altura que Onésimo Teotónio Almeida aproveita a deixa para explicar, aos estudantes e professores que enchem a sala, que a ideia defendida por Zizek é a teoria aristotélica sobre o humor: “Alguém que se sente superior ao outro”, logo ri. O romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, parte dessa ideia. “Rir é rir de cima, e quem ri de cima considera o outro inferior, e isso é mau”, acrescenta o autor de Onésimo. Português sem filtro — uma antologia (Clube do Autor). E Ricardo lembra Thomas Hobbes, “o riso é sentir a glória súbita de sermos superiores aos outros”, e continua a desfilar teorias até acabar em Freud. Mas a história de Ricardo que mais encantou os colombianos cheira a churrasco. “Não sei se conhecem a história de S. Lourenço, eu não conhecia, espero que seja verdade, ele morreu numa grelha. Reza a lenda que as últimas palavras do [mártir] S. Lourenço foram: ‘Deste lado já está, podem virar.’ Não sei se isso é verdade, mas, para a Igreja Católica, S. Lourenço é o santo patrono dos churrascos, dos chefes de cozinha. São Lourenço morreu como os outros, mas ser capaz de dizer estas palavras é uma pequena vitória sobre a morte e a única possível”, conclui o autor que na sua curta vida já teve várias ideias para epitáfios: “Espero que seja provisório” e também uma nova versão do poema de Paul Eluard ‘Nasci para te conhecer, para te nomear, libertinagem’”.

Juan David Pedraza, estudante da Universidade dos Andes, de 23 anos, assistiu à conversa dos dois autores. Adorou a história de São Lourenço. Começou por fazer um curso de literatura brasileira e depois considerou necessário fazer um curso de literatura portuguesa. Por isso conhece os clássicos, Camões, Fernão Mendes Pinto. No curso que frequenta, dado por Jerónimo Pizarro, o comissário da presença na FILBO, foram lidos os autores convidados para a feira. Não conhecia nada de Ricardo Araújo Pereira, nem as rábulas do Gato Fedorento no YouTube, mas leu as crónicas. “Pareceu-me que o Ricardo mostrou na conferência um conhecimento muito bom e profundo sobre o que é o humor, e gostei da ideia de o humor ser uma pequena vitória sobre a morte”, diz.

Durante a feira, Ricardo Araújo Pereira apresentou uma antologia de contos de Mário de Carvalho que acaba de sair na Colômbia. É um dos autores portugueses que mais admira e, nas crónicas que tem escrito para a imprensa, e que estão reunidas em livros, passa vasta cultura literária. Não tem um cânone, tem vários. Onde entram “a Bíblia e Shakespeare porque o que nós somos tem a ver com aquilo. Parece-me claro que o facto de no Génesis existirem três momentos de riso e nos três Deus torcer o nariz por as pessoas se estarem a rir, isso é significativo para a nossa civilização. Por exemplo, quando o Hamlet vai ao cemitério e pega na caveira do bobo da corte e diz: ‘Por que é que não dizes agora uma das tuas piadas?’ e ‘Vai ter com a minha dama, e diz-lhe que por mais maquilhagem que ela ponha na cara é a este estado que vai chegar. Fá-la rir disso’ — acho que isso é a minha profissão. Em três frases, a minha profissão é fazer as pessoas rirem-se do facto de, por mais maquilhagem que ponham na cara, é àquele estado que vão acabar por chegar” — assim falou Ricardo ao PÚBLICO, mais tarde, numa pausa na leitura de um livro de Stephen Leacock que avalia para saber se o publica na colecção de Literatura de Humor que coordena na Tinta da China.

“Outro cânone é uma família de autores de que gosto porque a prosa deles é uma prosa risonha, que faz aquilo que o Hamlet diz à caveira para fazer. E é o caso do Cervantes, do Diderot, do Camilo, do Mário de Carvalho, do Dickens e do Laurence Stern.” Ricardo tem orgulho na colecção de Literatura de Humor, apesar de a considerar um divertimento. O ano passado, aquele que foi considerado o melhor livro editado em Portugal pelos críticos do Ípsilon, O Bom Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, saiu na sua colecção. A obra foi publicada pela primeira vez integralmente em português.

“O facto de ser eu a ter a ideia de fazê-lo deve envergonhar toda a sociedade portuguesa. Por exemplo, o livro do Dickens que inaugurou a colecção, Os Cadernos de Pickwick, nunca mais tinha saído completo desde que a primeira edição saiu em Portugal e que foi traduzida pelo Henrique Lopes de Mendonça, autor da letra do hino nacional em 1890.”

Este é um do tipo de livros que Ricardo Araújo Pereira gosta porque faz parte do grupo dos que são divertidos logo a partir do título. “O título completo é Os cadernos póstumos do Clube Pickwick e a primeira frase é: ‘O imortal Pickwick’; ou por exemplo Três Homens num Bote, de J. K. Jerome, em que a primeira frase é: ‘Éramos quatro’. Eu gosto de um livro que começa a fazer pouco de mim a partir da primeira linha”, diz.

O PÚBLICO viajou a convite da Secretaria de Estado da Cultura

(Reportagem publicada no PÚBLICO no dia 30 de Abril de 2013)


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